quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Votar | Texto de Raquel de Queiroz na revista O Cruzeiro de 11 de janeiro de 1947

raquel_queiroz- Não sei se vocês têm meditado como devem no funcionamento do complexo maquinismo político que se chama govêrno democrático, ou govêrno do povo. Em política a gente se desabitua de tomar as palavras no seu sentido imediato.

No entanto, talvez não exista, mais do que esta, expressão nenhuma nas línguas vivas que deva ser tomada no seu sentido mais literal: govêrno do povo.

Numa democracia, o ato de votar representa o ato de FAZER O GOVÊRNO.

Pelo voto não se serve a um amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por determinado prazo de tempo.

Escolhe-se pelo voto aquêles que vão modificar as leis velhas e fazer leis novas – e quão profundamente nos interessa essa manufatura de leis! A lei nos pode dar e nos pode tirar tudo, até o ar que se respira e a luz que nos alumia, até os sete palmos de terra da derradeira moradia.

Escolhemos igualmente pelo voto aquêles que nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aquêles que irão estipular a quantidade dêsses impostos.

Vejam como é grave a escolha dêsses “cobradores”. Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria, nos chupar a última gôta de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bôlso.

E, por falar em dinheiro, pelo voto escolhem-se não só aquêles que vão receber, guardar e gerir a fazenda pública, mas também se escolhem aquêles que vão “fabricar” o dinheiro. Esta é uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos seus escolhidos. Pois, se a função emissora cai em mãos desonestas, é o mesmo que ficar o país entregue a uma quadrilha de falsários.

Êles desandam a emitir sem conta nem limite, o dinheiro se multiplica tanto que vira papel sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale mais zero.

Não preciso explicar muito êste capítulo, já que nós ainda nadamos em plena inflação e sabemos à custa da nossa fome o que é ter moedeiros falsos no poder. Escolhem-se nas eleições aquêles que têm direito de demitir e nomear funcionários, e presidir a existência de todo o organismo burocrático.

E, circunstância mais grave e digna de todo o interêsse: dá-se aos representantes do povo que exercem o poder executivo o comando de tôdas as fôrças armadas: o exército, a marinha, a aviação, as polícias. E assim, amigos, quando vocês forem levianamente levar um voto para o Sr. Fulaninho que lhes fêz um favor, ou para o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador, coitadinho, ou para Beltrano que é tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma carona e depois solicitou o seu sufrágio – lembrem-se de que não vão proporcionar a êsses sujeitos um simples emprêgo bem remunerado.

Vão lhes entregar um poder enorme e temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes dar soldados para êles comandarem – e soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência às ordens dos chefes que lhe dá o povo. Votando, fazemos dos votados nossos representantes legítimos, passando-lhes procuração para agirem em nosso lugar, como se nós próprios fôssem. Entregamos a êsses homens tanques, metralhadoras, canhões, granadas, aviões, submarinos, navios de guerra – e a flor da nossa mocidade, a êles prêsa por um juramento de fidelidade.

E tudo isso pode se virar contra nós e nos destruir, como o monstro Frankenstein se virou contra o seu amo e criador. Votem, irmãos, votem. Mas pensem bem antes. Votar não é assunto indiferente, é questão pessoal, e quanto! Escolham com calma, pesem e meçam os candidatos, com muito mais paciência e desconfiança do que se estivessem escolhendo uma noiva. Porque, afinal, a mulher quando é ruim, briga-se com ela, devolve-se ao pai, pede-se desquite.

E o govêrno, quando é ruim, êle é quem briga conosco, êle é que nos põe na rua, tira o último pedaço de pão da bôca dos nossos filhos e nos faz aprodecer na cadeia. E quando a gente não se conforma, nos intitula de revoltoso e dá cabo de nós a ferro e fogo. E agora um conselho final, que pode parecer um mau conselho, mas no fundo é muito honesto.

Meu amigo e leitor, se você estiver comprometido a votar com alguém, se sofrer pressão de algum poderoso para sufragar êste ou aquêle candidato, não se preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, à sua dependência ou à sua timidez. Lembre-se de que o voto é secreto.

Se o obrigam a prometer, prometa. Se tem mêdo de dizer não, diga sim. O crime não é seu, mas de quem tenta violar a sua livre escolha. Se, do lado de fora da seção eleitoral, você depende e tem mêdo, não se esqueça de que DENTRO DA CABINE INDEVASSÁVEL VOCÊ É UM HOMEM LIVRE. Falte com a palavra dada à fôrça, e escute apenas a sua consciência. Palavras o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha a gente até o inferno”.


A escritora Raquel de Queiroz integrou a Academia Brasileira de Letras.

Nota da redação: o jornalista Rubens Pontes achou por bem respeitar a ortografia da época.

Fonte: Pesquisa e sugestão de leitura de Rubens Pontes, do Portal DOPC

6 comentários:

  1. Pascoal interessante a gente constatar que um artigo escrito há tantos anos, continua atual como nunca. As pessoas continuam vendendo o seu voto, votando no cumpadre, ajudando o amigo através do voto, e o resultado continua o mesmo, também. Isto é, choro e ranger de dentes, ter que engolir, sofrer e se lamentar e esperar a próxima eleição. Esperamos que este artigo, tão atual, consiga tocar no coração e na consciencia de muitos e que eles saibam escolher o candidato que reuna as qualidades necessárias ao cargo.
    PRÁ FRENTE RAULLLLL!

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  2. Prezado Pascoal,
    Sou leitor deste BLOG a tempos e cada dia que passa fico mais orgulhoso por saber que em nossa terra ainda existem pessoas como você, que postam verdadeiras preciosidades que é de fundamental importancia para as pessoas que desejam ter de verdade REPRESENTANTES no Legislativo e no Executivo governando para o povo.
    Este texto deveria ser publicado em planfletos e distribuidos em nossas cidades de casa em casa, passado pelos professores, diga-se de passagem muitas vezes omissos em salas de aulas, para que todos pudessem refletir e votar com a razão e não em troca de favores mesquinhos oferendados pelos pseudos - representantes do povo.
    Agradeço desde já a oportunidade que você dá ao nosso povo de abrir os olhos e votar na necessidade coletiva, e não em beneficio próprio onde só ganha os que forem eleitos.

    Abraços ...

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    1. Eu conhecia o texto desde longa data. Meus professores não se omitiram. Tornei-me professor também. Já repassei para meus alunos o mesmo texto. O que não se pode fazer é, sempre que há oportunidade, alfinetar uma classe já tão sofrida, como se fosse responsabilidade dela resolver todas as mazelas da sociedade e isso com um salário que nem de longe se compara ao de um prefeito ou mesmo vereador.
      Sugestão: "me erra" - ainda que gramaticalmente incorreta transmite a mensagem de maneira perfeita!

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  3. Obrigada Pascoal por nos mostrar este texto que nos leva a uma reflexão de como devemos valorizar nosso voto que ainda é para muitos uma forma de negociação.

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  4. Sabe textos assim deveriam compor umjornal e ser distribuido a população ,mais carente que não tem internet,pra tentar melhoram o conhecimento do povo q ainda troca seu voto por pequenos favores...

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