O Jornal Estado de São Paulo, que é abertamente favorável a Serra, publica excelente editorial contra o fundamentalismo religioso que se insere de forma tendenciosa na atual campanha eleitoral.
A sucessão sequestrada
11 de outubro de 2010, 2:11 h
Este jornal já manifestou o seu apoio ao candidato presidencial da oposição, o ex-governador paulista José Serra - e explicou com todas as letras por que. Naturalmente, portanto, recebeu com satisfação o resultado da jornada eleitoral do dia 3. Além do mais, o segundo turno tem o potencial de infundir no debate político a substância que dele esteve praticamente ausente na fase anterior.
Qualquer que venha a ser o desfecho da disputa - e o Estado reitera a sua esperança no êxito do candidato que prefere ver no Planalto -, se a campanha efetivamente ganhar densidade, o grande vencedor será o processo democrático, o amadurecimento do eleitorado e dos que lhe pedem o voto. Lamentavelmente, o contrário é que parece prevalecer. A sucessão foi sequestrada pelo ativismo dos grupos mais conservadores de diferentes denominações cristãs.
Num crescendo, à medida que se aproximava o dia do pleito, padres e pastores, por uma variedade de meios, exortaram os fiéis a não votar na petista Dilma Rousseff, sob a alegação de que, se eleita, patrocinaria a liberação total do aborto.
Na internet foi ainda pior. Ela foi execrada sob a falsa acusação de ter dito que nem mesmo Jesus Cristo impediria o seu triunfo no primeiro turno. Atribuíram-lhe, ainda, a intenção de permitir o casamento gay e a adoção de crianças por casais homossexuais.
Com isso, não apenas submeteram a candidata a um verdadeiro auto de fé, obrigando-a a se penitenciar da suposta heresia, como alçaram à agenda eleitoral uma questão que não está na ordem do dia no País. Dos vários fatores responsáveis pelo declínio de Dilma e a correspondente ascensão da candidatura Marina Silva, nas pesquisas e nas urnas, terá sido esse o mais importante, isoladamente. Se o tema não contaminasse a disputa, é duvidoso que se chegaria ao segundo turno, com a candidata verde no papel de fiel da balança e os finalistas se contorcendo para se mostrar cada qual mais "a favor da vida" do que o outro.
É verdade que não há registro de manifestações do tucano "a favor do aborto", como se diz, numa brutal simplificação do assunto. Serra até chegou a dizer que a legalização do procedimento - além dos casos autorizados de gravidez resultante de estupro e situações de risco para a gestante - causaria um "morticínio". Isso não o poupou da fúria fundamentalista quando, ministro da Saúde, normatizou as condutas do SUS em tais circunstâncias. Já Dilma, na passagem hoje mais citada de uma entrevista concedida em 2007, considerou um "absurdo" que o aborto seja considerado crime no Brasil.
Isso não faz dela uma candidata pior ou melhor. Os critérios pelos quais se devem avaliar as credenciais dos aspirantes à chefia do governo são de toda outra natureza. Excluem a defesa ou a condenação de posições na esfera do comportamento individual em razão de convicções religiosas, ou da falta delas - salvo se o candidato prometer mudar a legislação para autorizar ou coibir determinada prática na órbita privada. Não foi o caso de Dilma. De resto, o apoio à descriminalização do aborto está longe de ser unânime no seu partido - para não falar das legendas coligadas com o PT.
Quando um clérigo sustenta que o aborto deve ser proibido em qualquer hipótese, cabe aos seus correligionários agir, na vida real, de acordo ou em desacordo com esse ponto de vista. Trata-se de uma decisão de estrito foro íntimo. O que o sacerdote não pode querer é que o Estado laico se dobre aos dogmas de sua fé. O País já passou por esse debate quando tramitava no Congresso o projeto, afinal aprovado, permitindo experiências com células-tronco embrionárias para fins terapêuticos. Agora, na polêmica do aborto, a perspectiva do Estado só pode ser a da saúde pública - a interrupção da gravidez é a terceira causa de mortalidade materna no Brasil.
Ainda é tempo de "civilizar" o segundo turno, resgatando-o da tutela religiosa. Para isso, a evangélica Marina Silva poderia dar uma contribuição excepcional. Ela, que não apelou para a religião em momento algum da campanha, tem plena autoridade moral para protestar contra a conversão de sentimentos religiosos em armas eleitorais.
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